Durante muito tempo da minha vida pensei diariamente em bits e bytes. Foram mais de 40 anos pensando em máquinas digitais, em se as máquinas podem pensar, e se nós pensamos como máquinas. Hoje me pergunto se valeu a pena investir tanto tempo nessas questões. Considerando as respostas que se apresentam até hoje – não e não -, meu impulso é dizer que não.
Muitos nãos injustos, na verdade. Não posso ser ingrata a uma profissão que me trouxe até aqui. Foi bom enquanto durou. Foi desafiador e várias vitórias foram conquistadas. E se hoje esse assunto já não é relevante para mim, certamente o é para todo o mundo.
Máquinas de bits e bytes praticamente nos comandam hoje. E o pouco e tudo o que fiz foi tentar construí-las à semelhança do homem, em especial no tocante a sua linguagem. Travei grandes batalhas, e só venci algumas delas porque meus objetivos eram modestos. Exércitos de cientistas perseveram pelo mundo todo e, ganhando pequenos terrenos ao longo de muito tempo, avançam cada vez mais em direção a … a quê?
Máquinas que entendem e falam nossa língua, é isso mesmo que queremos? Sim, é isso o que querem milhares de cientistas que se esforçam em mapear a língua humana em bits & bytes. Ah, que triste, tratar nossa língua como um sistema previsível, completamente decifrado e fechado em si mesmo! Ah, as belezas da língua, robotizadas e traduzidas em bits e comandos!
Minha reverência à língua embaça os resultados que eu mesma persegui e alcancei. Pode o mundo inteiro ansiar a interação pseudo-humana com uma máquina, mas não eu. Não mais. Podem as máquinas falar sua língua e interagir com o homem, mas não a minha língua.
Para expressar minha humanidade prefiro usar a minha língua, imperfeita, insincera, mas que alcance um outro ser humano. Que possa ser compreendida quase tal como eu a compreendo, quase me fazendo compreender.
As máquinas podem fazer tudo o que de melhor podem fazer sem que tenham que falar ou pensar como nós. Nós, sim, é que temos a capacidade de nos comunicar mesmo com aquilo que não possui igual habilidade. Mas também somos nós, humanos, que teimamos em quebrar qualquer barreira que se apresente. Que estranho prazer esse de construir artefatos que se assemelhem a nós mesmos! Tantos semelhantes já temos, por que mais? E por que artificiais?
Não é minha intenção polemizar; ao contrário, respeito muito aqueles que, como eu, dedicam-se à ciência para avançar o conhecimento. Não combato a robotização, minha questão é com a língua.
A língua humana não é apenas um mecanismo de comunicação, ela é muito mais do que isso. É cultura, é expressão, é realidade. É passível de definição formal? Sim. Toda ela? Parece que não. Como explicar e formalizar os vários significados de uma mesma palavra ou expressão, as nuances da fala, a subjetividade de quem ouve ou lê?
A aventura de estudar a língua, ainda que seja para aprisioná-la numa máquina, foi um alento à rotina de minha vida profissional. É fascinante se dar conta de seu poder. É igualmente surpreendente que há quem viva uma vida inteira sem jamais lhe prestar atenção. Muitos têm o sonho de dominar uma ou mais línguas estrangeiras, e guardam para essas toda sua admiração. Pobres! Não percebem o tesouro que possuem à disposição, adquirido com quase nenhum esforço.
Robôs poderão, sim, entender muito da linguagem humana; poderão também se fazer entender ao se expressarem como humanos. Mas para dominá-la, tal como nós, é preciso viver como nós, nascer, crescer, evoluir como nós, apreendendo e transformando a realidade, tendo a língua como seu principal instrumento. Serão, no máximo, como estrangeiros apátridas, com ótimo
domínio da língua, mas nenhum conhecimento do mundo que ela define.
Graça Nunes