Prefácio
O Processamento de Linguagem Natural (PLN) surgiu praticamente ao mesmo tempo que os computadores, por volta da década de 1940, já que a tradução automática entre línguas foi um dos primeiros problemas submetidos aos primeiros computadores1. No Brasil, as pesquisas em PLN começaram timidamente ainda na década de 1970, entre acadêmicos interessados em Inteligência Artificial (IA). Em 1984, foi realizada a primeira edição do Simpósio Brasileiro de Inteligência Artificial (SBIA)2, em Porto Alegre, RS, e boa parte dos trabalhos apresentados nesse evento eram da área de PLN. Naquela época, os sistemas propostos para português eram muito simples, sendo apenas estudos de caso bem elementares, como os que visavam encontrar respostas para perguntas do tipo “Qual?”, “O quê?”, “Onde?” e “Quando?”. Demorou mais uma década até que houvesse uma massa crítica de cientistas brasileiros dedicados ao processamento computacional do português.
No início da década de 1990, destacavam-se pesquisadores de PLN em diversos centros acadêmicos, como cientistas da computação e linguistas da UFRGS, PUCRS e da Unisinos, no RS; linguistas da PUC-Rio, no RJ; cientistas da computação na Unicamp, em SP, e na UFPE, em PE. Também nessa época, em 1993, nascia o NILC (Núcleo Interinstitucional de Linguística Computacional), no ICMC-USP/São Carlos3, um grupo pioneiro em PLN, que teve como desafio inicial produzir o primeiro revisor ortográfico e gramatical comercial para o português do Brasil. Para levar a cabo essa iniciativa, foi necessário compor uma equipe de informatas e linguistas que se tornaram agentes multiplicadores do PLN no Brasil.
Em 1993 foi realizado o primeiro evento exclusivo de PLN dedicado ao português ibérico e brasileiro, em Lisboa. Tal evento se tornou o International Conference on the Computational Processing of Portuguese (PROPOR)4, realizado alternadamente no Brasil e em Portugal, com mais de 15 edições realizadas até essa data (2023). No âmbito nacional, em 2003 foi criado o Simpósio Brasileiro de Tecnologia da Informação e da Linguagem Humana (STIL)5, que abriga diferentes eventos satélites tratando de temas específicos para o processamento da língua, em particular o Português, com 14 edições realizadas até essa data (2023). Em 2007, foi criada a Comissão Especial de PLN (CEPLN)6 da Sociedade Brasileira de Computação. A comunidade cresceu, inicialmente graças à formação acadêmica de profissionais e pesquisadores, posteriormente também em consequência da maior demanda de empresas tecnológicas e de outras naturezas, atraindo profissionais com diferentes formações. Em 2020, foi criado o grupo Brasileiras em PLN (BPLN)7, responsável pela edição deste livro.
Já há algum tempo as aplicações de PLN saíram dos laboratórios acadêmicos e entraram definitivamente no nosso cotidiano. O desenvolvimento de diversas áreas da computação de forma integrada (hardware, software, tratamento de grandes volumes de dados, aprendizado de máquina e aprendizado profundo) impulsionou o desenvolvimento do processamento da língua para uma nova esfera. Em novembro de 2022, o mundo conheceu o ChatGPT, um chatbot capaz de responder a qualquer pergunta ou solicitação (escrevendo códigos de programas, p. ex.), em língua natural, incluindo o português. Além de surpreender pelo seu desempenho linguístico, ele acendeu um sinal de alerta para a comunidade de IA e PLN, bem como para vários setores da sociedade. Várias indagações surgiram: Será que a IA está prestes a atingir a meta de criar sistemas que possam vir a substituir o homem em todas as tarefas? Quais os riscos que as diferentes sociedades correm se o mercado de trabalho for dominado por sistemas inteligentes? E se apenas poucas empresas dominarem o mercado de sistemas inteligentes? E o que pode acontecer com países não desenvolvidos? A conscientização desse cenário fez crescer o interesse pelas atividades da comunidade que desenvolve sistemas de IA, incluindo a de PLN, já que o ChatGPT é uma aplicação típica dessa área.
Durante todas essas décadas, a comunidade brasileira de PLN dedicou-se a construir recursos linguístico-computacionais e também aplicações variadas para o português. No início, eram interfaces simples que entendiam perguntas feitas em linguagem natural. Seguiram-se ferramentas de auxílio à escrita, tradutores, sumarizadores, classificadores de documentos, reconhecedores e sintetizadores de fala, entre outros. Atualmente, muitas aplicações envolvem os conteúdos das redes sociais, sendo que a língua tem sido processada também com o objetivo de conhecer a pessoa que faz uso dela, seja para lhe oferecer produtos e serviços, seja para analisar tendências e personalidades. Entram em cena os reconhecedores de opiniões e sentimentos, e de notícias falsas. Essa nova tendência de descobrir o que está implícito ou pode ser inferido da linguagem trouxe problemas muito desafiadores para a área. Vários domínios de conhecimento e atuação estão fortemente presentes nessa revolução tecnológica: a educação, a saúde, o direito, bancos e financeiras, comunicação, comércio, segurança, governança, entre outros. Tanto por serem afetados por ela como por ajudarem a construir novas soluções.
Se antes os especialistas em PLN tinham a tarefa de explicitar e codificar conhecimento linguístico, hoje seu maior desafio é preparar dados/exemplos linguísticos para servirem de entrada aos algoritmos no treinamento de modelos computacionais capazes de transformar dados em conhecimento ou ações. E isso não é pouco. Para enriquecer os dados brutos de modo que o conhecimento adquirido seja o mais completo e correto possível, ou que a ação gerada seja a mais adequada, é preciso saber escolhê-los, prepará-los e eventualmente anotá-los com informações de várias naturezas: morfológicas, sintáticas, semânticas, extralinguísticas etc. É a essa tarefa que muitos especialistas em PLN de todo o mundo têm se dedicado ultimamente. Outro papel importante está nas avaliações de qualidade dos recursos e produtos construídos, o entendimento do problema, a identificação das limitações e a proposta de melhorias. É crucial que as bases do desenvolvimento dessas tecnologias sejam fortes, bem informadas, consistentes e éticas. A linguagem nos define, e ela faz agora parte dos nossos artefatos, a complexidade deste cenário ainda não é bem compreendida. Com este livro, os autores pretendem contribuir para que o desenvolvimento da tecnologia que envolve a linguagem humana seja bem fundamentado, consciente e ético.
Os primeiros computadores também foram massivamente usados para realizar cálculos numéricos complexos, mas a tradução automática foi a primeira aplicação simbólica da computação.↩︎
http://comissoes.sbc.org.br/ce-ia/pg/historico/?sec=SBIA-1984↩︎